História da depressão:
A melancolia inspirou algumas das maiores obras da arte e da ciência - e é um dos maiores problemas que a humanidade precisa enfrentar neste século. Acompanhe os mais de 2 500 anos de história da depressão.
Texto de Lúcia Monteiro
O cotovelo apoiado na perna, a coluna curva, o rosto pálido e
inclinado, caído sobre a mão. O corpo parece tenso e pesado, e o olhar,
perdido no infinito. Olhe para o senhor da imagem acima e você terá a
impressão de fazer parte de um mundo em que o dia tem 50 horas e até o
Sol faz seu percurso em um ritmo mais lento que de costume. Uma
sensação? Frio. Um sabor? Amargo. Cor? Preta. Desejo? A inércia
completa.
Não são sensações incomuns. Em maior ou menor grau, nada menos que
340 milhões de pessoas têm momentos semelhantes a esse. É a estimativa
do número de casos mundiais de depressão feita pelo grupo de saúde
mental da Organização Mundial da Saúde. Ele também estima que uma em
cada 4 pessoas desenvolverá a doença ao longo da vida. Mas nem sempre
foi assim: ao longo da história, a situação foi vista de forma bem diferente.
O senhor acima é apenas um dos últimos representantes de uma tradição
de mais de 2 500 anos. Trata-se de uma escultura do artista australiano
Ron Mueck, sem título, mas conhecida como Grande Homem graças aos seus
mais de 2 metros de altura. Assim como ele, inúmeras pinturas,
esculturas e personagens da literatura ilustraram a mesma atitude
cabisbaixa perante a vida. Hoje em dia, basta um exame rápido para
diagnosticar pessoas como depressivas. Mas se estivéssemos na Grécia
antiga falaríamos de melancolia e, na Europa medieval, de acédia. O
melhor retrato já feito dessa história
está na exposição Melancolia - Genialidade e Loucura no Mundo
Ocidental, em cartaz em Berlim até maio, onde estão reunidas as imagens
que aparecem nesta reportagem. Para entender esse processo até chegar à
guerra declarada contra a depressão dos dias de hoje, é melhor começar
do começo.
Homens de exceção
No mundo ocidental, quem primeiro notou características depressivas e
as sistematizou em torno de um nome foi Hipócrates, considerado o pai
da medicina, no século 4 a.C. Ele cunhou o nome melancolia a partir de
duas outras palavras: mêlas = negro e kholê = bile. Melankholia
significa portanto "bile negra", segundo ele, um dos 4 humores que
constituem o corpo humano - os outros seriam a bile amarela, o sangue e a
fleuma. No texto intitulado Da Natureza do Homem, Hipócrates (ou seu
genro Polibeu, não se sabe ao certo) estabelece uma correspondência
entre os 4 humores, as 4 estações do ano e as 4 características
fundamentais da matéria (quente, fria, seca e úmida). A cada um dos
humores ele relacionou um sintoma psicológico. Em seu estado normal, o
homem teria os 4 bem equilibrados. O problema se daria em casos de
excesso de um ou de outro. Bile amarela demais causaria um temperamento
raivoso, da mesma maneira que a bile negra em abundância provocaria a
depressão. "Se a tristeza e a angústia não passam, o estado é
melancólico", disse Hipócrates em seus Aforismas.
No mesmo século, o filósofo grego Aristóteles, em uma obra conhecida
como Problema 30, reparou em uma estranha coincidência: "Por que razão
todos os homens de exceção na filosofia, na política, na poesia ou nas
artes são manifestamente melancólicos?" Não foi o único a perceber isso.
A propaganda do Prozac, o mais popular dos antidepressivos, enumera uma
lista de "homens de exceção" acometidos pela doença: os americanos
Abraham Lincoln e Theodore Roosevelt, o pintor holandês Vincent van
Gogh, os escritores Mark Twain e Ernest Hemingway, o inglês Winston
Churchill, a atriz Marilyn Monroe e o bailarino Vaslov Nijinsky são
alguns deles. A diferença é que, enquanto a indústria farmacêutica busca
encorajar os doentes a se tratar, Aristóteles via na melancolia um
atributo essencial da genialidade. Para ele, era um estado ao mesmo
tempo patológico e desejável.
Podemos imaginar uma balança para medir como a humanidade encarou a
melancolia em diferentes períodos e lugares. Na Grécia antiga, a balança
estaria equilibrada - o peso do lado positivo é igual ao do lado
negativo. Já na Idade Média, a balança pesaria de maneira extremada para
o lado negativo. Não se falava em melancolia, mas em acédia. A palavra
saiu de uso tanto no português como em outras línguas latinas, mas
continua presente no dicionário. De acordo com o Houaiss, significa
enfraquecimento da vontade, inércia, preguiça ou desordem mental,
caracterizada por apatia, melancolia e descuido. Pois não é que a acédia
entrou para o temido rol dos 7 pecados capitais? Isso mesmo, junto com a
gula, a avareza e o orgulho, por exemplo.
A história
é a seguinte: no início do século 4, centenas de monges estabeleceram
alguns dos primeiros grandes monastérios católicos nos desertos da Síria
e do Egito (nos dois retiros mais importantes, a sudoeste de
Alexandria, viviam 5 600). Esses monges, chamados de anacoretas,
pretendiam se isolar do mundo para, assim, fugir de toda e qualquer
tentação. Só que, mesmo distante de tudo, restava ainda um demônio: a
acédia. Evágrio Pôntico, antigo diácono de Constantinopla que se retirou
no deserto em 383, descreveu assim a tentação, também chamada de
"demônio do meio-dia": "Ele força o monge a manter os olhos fixos na
janela, fora de sua célula, observando o sol para ver se ele está longe
da 9a hora. Ele inspira a aversão pelo lugar onde o monge se encontra,
por seu próprio modo de vida e pelo trabalho manual. Além disso, provoca
a idéia de que a caridade desapareceu e que ninguém poderá
consolar-lhe. O demônio da acédia usa todas suas forças para que o monge
abandone sua célula e fuja".
É assim, com essa roupagem de tentação que leva ao pecado, que a
acédia chega à Idade Média. Em todo o ocidente medieval, a definição que
impera é a do frade dominicano são Tomás de Aquino (1227-1274), grande
filósofo do cristianismo. Para ele, trata-se de "uma tristeza
devastadora, que produz no espírito do homem uma depressão tal que ele
não tem mais vontade de fazer nada. A acédia é um desgosto pela ação".
Uma nova etimologia da palavra melancolia é forjada, o que contribui
para aumentar a carga negativa: melan agora é ligada ao termo latino
malus, que vale tanto para mal como para malsão, ou doente. Diante de
definições tão desprezíveis, o que poderia fazer o homem medieval ao se
sentir melancólico? Ora, não haviam muitas opções. Ou escondia o pecado,
ou rezava para tentar banir o abominado sentimento de sua alma.
A melancolia só daria a volta por cima no século 19. Na Inglaterra
dessa época, o prato mais pesado da balança é o da visão positiva: a
moda elizabetana manda vestir preto e o spleen é um atributo essencial
do romantismo. Órgão que se acreditava secretar a bile negra, o baço (ou
spleen, em inglês), virou sinônimo de angústia, mau humor e depressão.
As mulheres inglesas que andavam de cara amarrada por volta de 1800
diziam ter sido atingidas pelos vapores do spleen. Nada mais glamouroso,
na época. Apesar de sofrido e devastador, o sentimento
borocoxô é cultuadíssimo pelos românticos. Famoso poeta do período, o
inglês George Gordon (1788-1824), mais conhecido como Lord Byron,
influenciou escritores de diversos países. Os seguidores do chamado
byronismo tinham em comum um sentimento de mal-estar, desajuste, solidão,
desencanto e tédio, características resumidas na expressão mal du
siècle ("o mal do século", em francês). O tuberculoso e taciturno
Álvares de Azevedo (183-1852), autor de A Lira dos Vinte Anos, é o
escritor brasileiro que melhor incorpora a linha. Na França, o poeta
Charles Baudelaire (1821-1867) representa bem o espírito nos versos de A
Morte dos Pobres:
A Morte é que consola e nos faz viver;
É o alvo desta vida e a única esperança
Que, como um elixir, nos dá fé e confiança,
E forças para andar até o anoitecer.
Em meio à tempestade e à neve a se desfazer,
É a luz que em nosso lívido
horizonte avança
É a pousada que um livro diz
como se alcança,
E onde se pode descansar e adormecer.
É um Arcanjo que tem nos dedos imantados
O sono eterno e o dom dos
extasiados,
E arruma o leito para os nus e os desvalidos;
É dos Deuses a glória e o místico celeiro,
É a sacola do pobre e o seu lar verdadeiro,
O pórtico que se abre aos
Céus desconhecidos!
Hoje em dia não se fala tanto de melancolia. A palavra ainda é usada
para casos profundos de depressão, esse sim, o termo médico em voga. Mas
qual é a diferença entre tristeza, melancolia e depressão? Bom, as
fronteiras não são bem claras. De uma maneira geral, pode-se dizer que o
termo depressão herdou boa parte dos atributos da melancolia do
passado. Diferente dos gregos, no entanto, o mundo de hoje vê a
depressão como uma doença sem qualquer implicação positiva. "A tristeza é
uma emoção universal e tem o seu valor: leva à introspecção, ajuda a
elaborar a frustração e contribui para o amadurecimento", diz o médico
Teng Chei Tung, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em
São Paulo. "Do ponto de vista clínico, a depressão é uma doença
incapacitante e, diferente da tristeza, não pode ser controlada pelo
paciente sozinho." Ou seja, a balança agora está no lado negativo.
Mal dos macambúzios
Como foi que a melancolia se transformou em doença, entrou na seara
da psiquiatria e passou a ser combatida com uma intensidade semelhante à
da Idade Média? É verdade que os gregos já viam o lado patológico da
melancolia. Mas nada comparado ao problema de saúde pública de nossos
dias. A partir do século 18, os médicos começaram a se interessar pelas
doenças mentais. Eram os chamados alienistas, que consideravam a
melancolia como um tipo de loucura ou como uma mania. O fundador da
psiquiatria na França Philippe Pinel (1745-1826) - aquele que deu origem
à expressão "ficar pinel" - e, mais tarde, seu aluno Jean-Etienne
Esquirol (1772- 1840) estão entre os mais notáveis estudiosos da área.
Em 1915, Freud comparou a melancolia ao luto. Segundo ele, "ambos
provocam uma depressão profundamente dolorosa, uma suspensão do
interesse pelo mundo exterior, a perda da capacidade de amar e a
inibição de toda a atividade". A diferença seria que, enquanto o luto é a
dor pela perda de alguém ou algo, o melancólico se ressente da perda do
"eu", o que também traria uma diminuição da auto-estima.
Um grande avanço veio com a descoberta - por acaso - dos
antidepressivos. Na década de 1950, percebeu-se que a isoniazida, enzima
usada para tratar tuberculosos, produzia nos doentes uma inesperada
sensação de ânimo e bem-estar. Uma reação similar foi notada com a
inipramina, um antialérgico. Usadas para tratar depressivos, no entanto,
essas substâncias provocavam muitos efeitos colaterais, já que não
haviam sido criadas com esse fim específico. Os antidepressivos agem
sobre algumas substâncias que regulam a transmissão de impulsos
nervosos, os neurotransmissores - em especial sobre a serotonina, que
além de influenciar o temperamento, controla a liberação de hormônios
que regulam estados como o sono e a fome. Deprimidos apresentam
distúrbios na regulação de serotonina, mas comece a brincar com essa
substância e você corre o risco de desregular o organismo inteiro.
A primeira droga capaz de agir sobre a serotonina sem tantos efeitos
colaterais foi o Prozac, que começou a ser vendido nos Estados Unidos em
1988. Graças a ele, os antidepressivos se tornaram populares. "O
remédio é tão seguro que dá a impressão de que qualquer médico pode
tratar a depressão", afirma Tung, do Hospital das Clínicas. "Mas hoje em
dia a medicação é acompanhada com mais cuidado. A associação dele com
outros medicamentos pode gerar intoxicação. Estudos sugerem até que
tratamentos com antidepressivos podem agravar a depressão ou levar ao
suicídio."
Mesmo com remédios, as estatísticas atuais sobre a depressão são
alarmantes. Além dos 340 milhões de pessoas com a doença, estima-se que
em 2020 ela será a 2a principal causa de incapacidade no mundo, atrás
apenas de doenças cardíacas (hoje, ela ocupa a 4a posição desse
ranking). Não é à toa que, entre as medicações só comercializadas com
receita médica, os antidepressivos são os campeões de venda. Por outro
lado, nunca a depressão foi tão estudada quanto hoje, o que abre a
perspectiva de melhores remédios.
Mas será que estamos no caminho certo? "Não acredito que nós hoje
compreendemos melhor a melancolia do que os gregos", diz o historiador
da arte
Jean Clair, curador da exposição Melancolia, que estudou as abordagens
artísticas da depressão por mais de 10 anos. "Nossa época a nega. É
preciso ser feliz, engraçado, divertido, positivo e, nesse contexto, a
melancolia é proibida. Se você se sente melancólico, toma um Prozac. O
ideal do homem hoje em dia é se manter constante o tempo todo, sem
alterações de humor, como as frutas e os legumes do supermercado, que
têm sempre a mesma cor, o mesmo tamanho e o mesmo gosto." A mostra reúne
250 obras, entre telas, desenhos, gravuras e esculturas, todas com o
tema da melancolia. "O público se dá conta de que a melancolia faz parte
da nossa cultura e não é apenas uma doença. Além do mais, é
reconfortante saber que o que sentimos se inscreve na história e foi responsável por algumas das mais importantes obras de arte",
diz Jean Clair. Na França, a mostra atraiu 330 mil pessoas em 3 meses.
Na esteira do seu sucesso, foram lançados mais de 10 livros sobre o
tema. "O sofrimento da melancolia constitui o homem, da mesma maneira
que os peixes têm espinha", diz o professor Jackie Pigeaud, da
Universidade de Nantes, França, conhecido por seus estudos sobre a história
do pensamento médico. Pacientes com depressão clínica devem buscar
ajuda e procurar se tratar, mas ficar triste ou ter alterações de humor
não deve ser motivo de vergonha. Como diz Pigeaud: "Anormal é não sofrer
nunca e estar sempre contente".
Para saber mais:
Tristeza Maligna - Lewis Wolpert, Martins Fontes, 2003
Flores do mal - Charles Baudelaire, Nova Fronteira, 1985
www.smb.spk-berlin.de - Exposição Melancolia, em cartaz em Berlim
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